quarta-feira, 19 de maio de 2010

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Ferreira Gullar

De Na Vertigem do Dia (1975-1980)


Fonte do texto:
http://www.revista.agulha.nom.br/gula.html#traduzir

3 comentários:

Primeira Pessoa disse...

coincidência boa...
postei Traduzir-se esta semana no meu blog.
com direito a fagner e chico buarque cantando, como num karaokê.

bela escolha!

Primeira Pessoa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tais Luso de Carvalho disse...

Ferreira Gullar, que postagem linda, Tânia.
Veja como somos indecifráveis: uma hora somos uma pessoa, pouco depois somos outra, com novos desejos e voando para outros mundos. Na verdade, temos tantos desatinos que não conseguimos ser apenas um mais normalzinho, mais em paz. Com isso, somos todos uns desconhecidos à procura de algo que está tão perto.

Beijos, querida.
Tais Luso

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